Por Sylvia Araujo...
Esticou o braço delgado para o ônibus e, ao mesmo tempo, em um
improvável malabarismo, tentou encontrar as moedas perdidas no fundo da
bolsa enorme de couro cru. Além do peso no ombro esquerdo, todos os dias
ela carrega na outra mão uma pasta cinzenta cor de chumbo que, pela
sensação desconfortável de ardência na lombar, deve pesar, no mínimo,
uns três quilos e meio. Clara é recém formada no curso de Letras da
Universidade Católica e, além do trabalho em três escolas municipais,
revisa e traduz textos em inglês. Sua vida, nos últimos tempos, tem sido
levar papéis para todos os lados, o tempo todo. Mas existe um porquê:
seu apartamento próprio de dois quartos na zona sul, de frente pro mar,
estará quitado em dois anos, de acordo com os seus cálculos, graças ao
seu esforço e à mesada gorda que o pai ausente deposita na sua conta
poupança todo dia cinco.
Sentada no banco do meio, do lado do motorista, todos os dias repete o
mesmo ritual. Apoia a pasta pesada no colo, abre a nécessaire bege, tira
dela o pequeno espelho rosa em formato de coração e se olha nos olhos
com complacência. Ajeita os fios loiros e finos na trança comprida
meticulosamente repartida, passa pó compacto no rosto branco com um
pincel largo de cerdas curtas e espalha um batom quase imperceptível nos
lábios rosados. Um suspiro. Dois. Guarda tudo na bolsa, puxa a meia
calça na altura das coxas, ajeita a saia nos joelhos e a gola da blusa
impecavelmente passada, esfrega a ponta dos dedos nas laterais dos
sapatos lustrosos e abre um livro, que só é fechado na esquina de casa.
Nesse dia, no ponto seguinte, na altura da Voluntários, subiu as escadas
do ônibus, com considerável dificuldade, uma senhora obesa de cabelos
curtos ensebados, trajando um jardim de maxiflores multicoloridas, do
pescoço atarracado até o meio das canelas cabeludas. Depois de se
arrastar lentamente pelo corredor estreito, desabou ao seu lado,
ofegante. Lambendo os fios do bigode escuro lotado de gotículas de suor
amarelado, perguntou, numa fala entrecortada e ríspida, se Clara poderia
fazer o obséquio de ocupar menos espaço, para que ela pudesse caber
também no banco. Solícita, Clara fechou o livro com o indicador marcando
a página e, timidamente, se desculpou, tratando de espremer seu corpo
franzino de miss entre a velha e a meia janela rachada imunda.
Sem agradecer, a mulher observou por alguns instantes a capa do livro em
suas mãos de dedos finos e esmalte transparente e, com um olhar que fez
a espinha da garota gelar e seu corpo tremer inteiro em um arrepio
incontido, perguntou:
- Bukowski?
- É... - respondeu Clara, quase com medo.
- Gosta?
- Sim.
- Puta. - grunhiu a velha, entredentes.
- Como?
- Puta. Vagabunda, perdida, biscate, rameira.
- Desculpa? A senhora está me ofendendo? - perguntou, sem conseguir acreditar no que ouvia.
- Se lê Bukowski, e gosta, é puta. - cuspiu enraivecida a gorda, já se levantando para sentar duas cadeiras atrás.
Com as ofensas inesperadas rodopiando dentro da cabeça, Clara segurou o
espelho de novo e se olhou demoradamente. Deixou que cada uma daquelas
palavras preenchesse todo o espaço da boca e as repetiu para si mesma,
uma a uma, observando, cautelosa, cada movimento labial no reflexo do
coração rosado: Puta. Vagabunda. Perdida. Biscate. Rameira. E sorriu.
Arrancou o elástico que prendia a ponta dos cabelos sedosos e soltou a
trança perfeita com os dedos compridos. Limpou a boca insossa com as
costas das mãos e tirou da nécessaire o batom vermelho, aquele que tinha
comprado na revista da Avon mas nunca teve coragem de usar. Abriu os
dois primeiros botões da camisa e encurtou a saia, dobrando o cós até
que ela chegasse ao meio das coxas bem torneadas. Levantou do banco
exalando um cheiro rascante de fêmea e, consciente do poder que
carregava nos quadris, ao avistar a velha senhora piscou um dos olhos, a
língua úmida desfilando abusada entre os lábios carmim, enquanto puxava
a corda presa no teto. Em cima do salto, desceu e seguiu. Inteira puta.
E magnanimamente feliz..
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